(Não) Muito Tempo em Silêncio

* Prefácio escrito para o livro Paisagens da Janela, de Inaldo Tenório de Moura Cavalcanti (LP-Books, 2014), lançado no último dia 23 de Agosto, na Bienal Internacional de São Paulo.


A enorme quantidade de considerações que poderiam aqui ser traçadas, somente a partir do título definido para este livro, sinaliza o incontável repertório de significados utilizado por Inaldo Tenório de Moura Cavalcanti junto ao tratamento de suas palavras. O conceito da ‘paisagem’ para a Arte e a própria noção desta como ‘janela’ da expressão humana, concentra muito do que a presente compilação de 24 contos realiza em sua unidade, na maneira como cada texto conduz a outro e se deixa guiar por ele, como se o anterior e o próximo fossem inseparáveis e coexistissem numa mesma dimensão do imaginário.

Talvez pela maturação de Inaldo com a prosa — entre o anterior e o presente livro de contos, veio à luz um romance, ‘O Colecionador de Cavalos’ (2013) — os breves textos aqui reunidos facilmente poderiam ser tratados como um novo romance, uma ambição do autor que não se contenta com o clímax, elemento narrativo pouco encontrado por estas páginas. A predominância da primeira pessoa e a constante elaboração do monólogo interior dá a amarra destas paisagens mentais, obsessivamente talhadas pela sobrevivente letra de Inaldo. E se mais uma vez atrevo-me nesta associação (da escrita pela morte e para a vida) é porque sinto em não ter guardado uma de minhas frases no prefácio passado para este momento, pelo que ouso a cópia: “e por isso a morte não lhe vem [para a literatura de Inaldo] como em tempo futuro, como em medo, mas gloriosa ressurge como coisa que passou e venceu, que de certa forma ficou, pedindo agora lugar para fazer valer a dor.”

Diversos são os espelhamentos e desdobramentos deste livro para com o ‘Meu Pai e Outros Contos’, muitos mais do que a repetição deste que novamente vos prefacia a publicação (pelo que de novo sou muito grato), sendo a potência do ‘lidar com a morte’, o que talvez mais sobressaia no conjunto da obra, no aprimoramento das formas. É notável a sucessão de ‘consciências do fim’ que atravessam o livro, seja na reflexão de uma morte que se escolhe, como nos contos ‘Olhos de Suicida’, ‘Inquieto Silêncio’, ‘O dia em que não morri’ e ‘A Passagem’; seja em textos que tematizam o esfriamento do desejo e do pathos, como ‘Cenário’, ‘O livro’ e ‘Decote em V’; seja na dolorosa confrontação da fé, de uma crença que também conhece o luto, como no conto ‘Santos e Anjos’, um dos lampejos mais corajosos aqui guardados.

É no conto que dá título ao livro, que lemos: “Meu olhar mata a beleza... sempre se tem chance de morrer, todos os momentos, mesmo sem motivo.” E daí sabemos a confirmação de uma linguagem que resiste, incondicionalmente, ao próprio ato de se escrever. As vozes de Inaldo parecem sempre cientes de sua posição, por se quererem ouvidas, mesmo que elas próprias não consigam se escutar direito. São inquietações, perturbações de olhares que não se cansam das mesmas coisas, mas nelas encontram a motivação de uma existência. Pois, a voz que no conto ‘Nada Será Como Antes’, pergunta: “Por que todas as coisas parecem se repetir?”, é de alguma forma respondida pelo protagonista de outro conto, ‘O Livro’, que descobre a necessidade de estar “sempre vendo como se fora a primeira vez”.

Ainda que Inaldo dialogue com diversos nomes de sua cabeceira, como Kafka, Kundera, Donoso, Nietzsche e Camus, trazendo suas presenças para o entrelaçamento do texto que agora se faz, ele não se deixa soterrar pela proximidade dos cânones, pois assume esta necessidade do olhar virginal, percepção infante das coisas, como uma prerrogativa intransponível de sua criação. É preciso ver e sentir o mundo com a surpresa de uma primeiridade, com o espanto dos céticos ou dos que simplesmente não sabem das coisas, mas as descobrem enquanto vivem. E que, por isto, vivem.  Ao contrário da voz que abre a primeira linha do novo primeiro conto, Inaldo não aguenta estar muito tempo em silêncio, não é ele quem tem medo das palavras. E se exorciza pelo avesso desta consciência, na voz suicida do texto.

Como revela em outro momento, no conto ‘A Passagem’: “Às vezes paro, querendo que o tempo também parasse, o tempo de todos, o tempo completo; não só o meu.” Inaldo nos oferta mais uma de suas dores, pois vem disto a alegria: de saber-se impotente, mas vivo, nem que seja para ludibriar o tempo que resta. Eis o convite da leitura que segue, em que o tempo de nós todos seja por completo suspenso, neutralizado, para que assim reencontremos o que possa ter se perdido, que assim nos lembremos de voltar ao prazer de uma descompromissada janela.


Nenhum comentário:

Postar um comentário